26 de jul. de 2011

Um texto antigo

Achei esse texto perdido nos meus documentos. Foi um exercício para uma matéria da faculdade... Estava sem criatividade e peguei um texto antigo aqui do blog, remodelei e pronto!

Fenomenologia do Abandono

Li há pouco, num portal de notícias qualquer, que 65 mil maranhenses tiveram que abandonar suas casas devido à enchente que castiga o estado há dias. Eles, os 65 mil, estão desabrigados, praticando vários tipos de abandono.

Eu tenho exercido o abandono há anos! Virou quase uma oração – aquela que se faz todos os dias antes de dormir ou acordar -, ou um hobby. Abandonar projetos, pessoas, fotos, fatos, lembranças, saudades, cachorros, objetos velhos...

Abandonar é difícil, mesmo quando se sabe que abandonar é tudo que se tem. É tudo que se pode ser e oferecer naquele momento. Desde que me dou por gente, eu abandono – primeiro foi o traumático abandono do calor da barriga da minha mãe, depois o peito, então a chupeta, a mamadeira e o dedo, a fralda, os avós, o berço, o colo, a amarelinha, colegas, casas, cidades. Um longo caminho para deixar de ser o que era e me tornar o que sou.

Parece que em minha vida o verbo abandonar é tão presente quanto ser, sorrir, chorar, mudar...
Eu estou dando um tom que não é o que eu queria pra essa crônica, mas como escrevo por fluxo de consciência, dou o tom que estou, senão eu desafino.

Você ainda não sabe, mas eu abandonei a faculdade uma vez. Cursava Letras, na Unesp, e posso dizer que não era assim “uma Brastemp”, mas para minha família era melhor do que cursar o mesmo curso no Mackenzie.

Acabei entrando lá por falta de opção. Gostava de literatura, venho escrevendo diversos tipos de textos a vida toda e tenho uma necessidade saudável de ensinar, porém sempre me achei melhor do que o curso de Letras, mas pior que os demais. Então, foi assim, por uma parca identificação que nos encontramos.

No mesmo ano em que comecei o curso, percebi que não pertencia àquela estirpe hippie-universitária, mas decidi entrar na dança: comprei saias indianas, rasteirinhas e muitos brincos e anéis de côco – uma verdadeira volta ao inexistente Woodstock tupiniquim.

Me inseri entre eles e, tentando ser igual para não chamar a atenção para minha abissal discrepância ideológica (era rockeira inveterada e abominava hippies), virei o tópico de grande parte das conversas. Em pouco tempo a faculdade inteira me conhecia por atos e imagens boas na maioria (e uma minoria de coisas nem tão boas assim).

Nesse processo de inserção, abandonei minha identidade. Nada grave naquele momento, no entanto, no terceiro ano de curso, quando eu estava imersa de fato no campus, transpirando o unespiano way of life, recebo um convite para retomar um dos meus ideais – uma banda de rock. A proposta era ir para São Paulo com a banda que tinha o Kiko Zambianchi como produtor. Foi um convite para o fim da prática do abandono. Iria voltar para o lugar ao qual sempre pertenci – palcos, rock e pouco sono.

Meus pais fizeram o papel de pais e pediram para eu não desistir da Unesp. Eu fiz papel de filha adolescente e desisti. Entenda – não abandonei na época, desisti. Não por falta de coragem na época, mas por excesso. Não tive medo de ficar sem Letras e Unesp, mas medo de não aproveitar uma oportunidade única.

Descobri pouco tempo depois que abandonei, naquele dia em que decidi largar a faculdade, uma das coisas mais importantes da minha vida (importante porque, algumas vezes, tive vontade de pedir desculpas pra caixinha de decisões e retomar minha vida anterior): um estágio com um orientador fantástico e uma entre as várias opções de possíveis histórias da minha vida. No entanto, só abandonei porque tinha um sonho e nele não cabia aquela história, nem aquela faculdade.

A banda não deu certo. O sonho acabou (o que não me tornar menos inspirada para sonhar) e meu contrabaixo – eu sou/era baixista – não faz nada vibrar há quase um ano.

Demorei um bom tempo para abandonar meu orgulho e conseguir assumir em palavras toda essa estética do desperdício. É muito difícil assumir fracassos, entender as perdas e explicar o abandono.

Abandonar faz parte da extensa gama de verbos que envolvem o escolher, pois quando se escolhe algo, inevitavelmente, abandona-se outra coisa. Abandonar é fazer uma escolha com sentimento. É um ato de egoísmo sadio: nós só abandonamos quando vemos que algo não precisa mais de nós. Isso dói e com a dor, aprendo.

Abandonar faz parte do aprendizado e é um ato de bravura! Machuca abandonar... Tem de ter ou muita coragem ou muita falta dela. Eu não sei até agora se eu tive muita coragem ou pouca. Eu sei que, se eu não largasse a faculdade, o orientador, eles iam me largar - era uma questão muita séria, não tinha carnaval, nem cores, nem serpentinas; era só o salão sujo e o gosto de ressaca...
 
O abandono não é samba, nem choro. Não se pinta, não se enfeita, não se despe de nenhum sentimento. Abandonar é tristeza e alívio. É dúbio, é sinestésico. É a pele pálida de entender que ser humano é ser abandono.

3 comentários:

Anônimo disse...

Identificação total com quase tudo o que você disse.

Saulo Mazarin disse...

Nesse post matei as saudades da Renata genial.

suzane m. disse...

acho que já é quarta vez que leio isso, e não tem como não me sentir cada vez menos sozinha na troca de trilhas.

btw, acho que metade dos alunos de Letras acaba lá assim, mas quantos têm o necessário pra voltar pra essência eu não sei dizer.